Uma expedição pelos Corais da Amazônia

sábado 14 de abril de 2018 amanheceu chuvoso. Já era meu quinto dia no mar, a bordo do navio Esperanza, a mais de 100 quilômetros da costa do Amapá. A cada nova tentativa de conhecer o que existe embaixo daquele mundaréu de água, tudo ficava mais cinza. Coletar amostras relevantes com uma pá mecânica de meio metro de diâmetro era como encontrar agulha no palheiro. A filmadora, resistente à pressão das profundezas do oceano, também não ajudava muito. Tudo que capturavam era areia e uma velada frustração.

Base naval: maior e mais antigo navio do Greenpeace, o Esperanza conduziu os pesquisadores brasileiros durante duas expedições (foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace)

Até que, apesar da chuva insistente, o clima no barco melhorou. Após mais uma descida, pequenos pontos brancos começaram a surgir diante da câmera em meio à água turva pela pluma do Rio Amazonas. Ronaldo Francini, pesquisador-chefe a bordo, deu a letra: “Esponjas sobre uma cama de rodolitos”. Pela primeira vez na história, alguém que cruzava essa inexplorada região pôde afirmar com certeza: estávamos navegando sobre o Grande Sistema Recifal da Amazônia.

Não que ele seja novo. A análise de um pedaço superficial revelara 1,4 mil anos. Para saber a idade real do recife, seria necessário extrair um pedaço mais profundo dessa gigantesca estrutura de carbonato de cálcio. “Certamente são dezenas de milhares de anos”, afirma Francini.

Especialista em corais, o pesquisador visitou, em 1989, o Parcel de Manoel Luiz, a 80 quilômetros da costa do Maranhão, considerado o limite norte para a ocorrência de recifes no Brasil. “Quando observamos que ali havia tanto coral quanto em Abrolhos [arquipélago a 66 quilômetros da Bahia], veio à cabeça que poderia haver mais rumo ao norte”, recorda Francini. “Me perguntavam: se tivesse dinheiro para fazer uma expedição, para onde iria? Para o norte, que é a grande fronteira do conhecimento.”

O que se sabia da formação natural vinha de uma publicação de 1977, em que dois pesquisadores norte-americanos teorizaram sobre a existência de um recife após coletar esponjas e peixes que viviam próximos aos corais. Somente em 2011, o sonho de Francini e outros 37 pesquisadores de diversas universidades brasileiras pôde se concretizar a bordo de um navio da Marinha.

Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace

EM BUSCA DOS CORAIS
Somados todos os rios do mundo, 20% da água que chega ao mar vem do Amazonas. Ele invade o oceano por 200 quilômetros, formando a pluma do rio. Carregada pela Corrente Norte Brasileira, ela chega a 500 quilômetros da foz (ponto de desaguamento de um rio), em Macapá. Pelo volume de água doce, inóspita à vida marinha, e pela grande quantidade de sedimentos, que bloqueia a luz, acreditava-se que essa pluma formava uma espécie de barreira biológica desabitada.

A publicação de uma pesquisa na revista Science em 2016 acabou de vez com essa hipótese. Um grande complexo de recifes espalhados por uma área de 9,5 mil km² foi revelado, com 61 tipos de esponjas, seis de corais e 73 de peixes, além de algas calcárias, estrelas-do-mar e outras espécies marinhas. Antes barreira, a região passou a ser vista como um corredor genético entre o Caribe e o litoral do Brasil, sendo a pluma um filtro que seleciona as espécies mais aptas.

O artigo chamou a atenção da organização ambiental Greenpeace. A poucos quilômetros dali, o governo brasileiro leiloou blocos para a abertura de uma nova fronteira na exploração de petróleo. Com o processo de Licenciamento Ambiental em andamento, a descoberta do complexo de recifes poderia barrar o início da operação das petroleiras. Surgia, assim, a campanha “Defenda os Corais da Amazônia”, que já conta com mais de 2 milhões de assinaturas coletadas em 21 países. O nome pegou, ainda que chamar a região de “Corais da Amazônia” não seja cientificamente correto.

Recifes, por definição, são estruturas rígidas criadas pela ação de seres vivos. No caso da foz do Amazonas, algas que transformam o carbonato presente no oceano em um “esqueleto” de calcário começaram a incrustar na rocha e criaram condições para outro tipo de alga calcária, os rodolitos. Em seguida vieram corais, esponjas e poliquetas — um tipo de verme que também deixa uma estrutura rígida. Conforme uns vão morrendo, outros nascem por cima. Por milhares de anos, a massa cresceu até formar o recife. Um processo longe de um fim.

Como o termo “Algas Calcárias da Amazônia” não teria lá muito apelo, ficou “Corais” mesmo. Nada que diminua sua importância, vital para a biodiversidade. Apesar de ocuparem cerca de 1% do fundo dos oceanos, essas regiões (que também existem em Abrolhos e no Atol das Rocas) suportam a existência de 25% a 33% das criaturas do mar.

Cinco meses depois, no início de 2017, partia a primeira expedição do Greenpeace com o navio Esperanza pelos “Corais da Amazônia”. Com um submarino tripulado, encontraram recifes em profundidades de até 180 metros, o que aumentou em seis vezes a estimativa do tamanho da formação natural, para 56 mil km². Em abril deste ano, o Esperanza partiu de Belém para sua segunda rodada de pesquisas. Foi parte dessa jornada que a GALILEU acompanhou. Não sem uma pitada de emoção.

Quem habita: parece uma estrela-do-mar, mas é um ofiuróide, coletado pela draga a 185 metros de profundidade (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace)

VIDA MARINHA
Maior e mais antigo navio do Greenpeace, o Esperanza foi construído a pedido da União Soviética, em 1984, para ser utilizado no combate de incêndios. Com o fim do país socialista, a embarcação passou por diversas mãos antes de ser comprada para servir às causas ambientais. Ela seguiu da França até a capital do Pará, de onde partiu no dia 3 de abril.

Meu embarque se deu só no dia 9, quando o Esperanza já se encontrava próximo à fronteira com a Guiana Francesa. Partindo de Macapá, foram nove horas de carro em direção à cidade de Oiapoque, mais uma hora e meia de voadeira, um barco típico da região Norte do Brasil, até encontrar uma lancha do Greenpeace. Foram mais 120 quilômetros mar adentro, em uma encharcada viagem de quatro horas, com a companhia de ondas que chegavam a 3 metros de altura.

Esse foi somente o primeiro dos meus 15 intensos dias como marinheiro de primeira viagem. Por sorte, o enjoo se limitou às primeiras horas de navio. Mesmo pessoas acostumadas com o mar sofrem, às vezes por três dias, até que o organismo se adapte às ondas. Mas logo percebi que essa era somente a primeira prova daquele Big Brother em alto-mar.

Trinta e sete pessoas, de 17 nacionalidades, confinadas em um navio de 72 metros de comprimento. Apesar de não haver câmeras, não sobrava espaço para privacidade. Cada um tinha que fazer seu papel para, literalmente, manter o barco andando, e ainda fazer ciência nesse meio-tempo. Do capitão ao repórter aqui, que deu uma força na faxina, tudo funciona como uma máquina. Mas engrenagens humanas engripam. O trabalho pesado e repetitivo estampava a irritação na cara dos mais vividos marinheiros — salvo durante a cerveja no final do dia.

No horizonte, somente água. A vontade de conquistar a liberdade a nado transparecia em mim e em diferentes pessoas ao longo dos dias. Expressões impensadas de um sentimento latente. Como se fosse possível superar a braçadas os 140 quilômetros que nos separavam da costa. Como se não significasse pôr fim a um projeto de 800 mil euros. Como se alguém estivesse disposto a entregar tudo de mão beijada para as petroleiras.

Só quando comecei a perceber que era difícil para todo mundo foi que o teste de resiliência mental ficou mais fácil para mim. “A gente passa 20 anos fazendo expedição e sempre é um desafio enorme. Uma convivência extremamente condensada. Parece que se vive uma década em um mês no barco”, revela o pesquisador-chefe Ronaldo Francini. “Por mais que a pessoa tenha experiência, a cada expedição começa tudo do zero.”

Vida e mar: robô submarino observou um coral-mole e pelo menos seis tipos de esponjas-do-mar a 90 metros de profundidade (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace)

MAR EM FÚRIA
Em vez de milhões de reais, o prêmio máximo nesse BBB é conseguir fazer ciência — mas até isso estava difícil. Não é à toa que a região é tão pouco explorada. “Me surpreendeu muito a dificuldade de trabalhar aqui”, diz Mirella Costa, oceanógrafa especialista em dinâmica costeira. “Tenho experiência em lugares remotos, como Atol das Rocas, que também tem condições adversas, mas nunca vi um lugar que exigisse trabalho tão duro por conta das condições do mar e das correntes.”

A Corrente Sul Equatorial, que tem início na África, bifurca ao colidir com o litoral do Nordeste brasileiro. A que sobe, chamada de Corrente Norte do Brasil, encontra pouca profundidade na plataforma continental e acelera.
 Ao se deparar com outras correntes, mais ao norte, curva-se sobre si mesma em um movimento que forma grandes espirais no oceano. Some-se a isso o fato de a região ficar sob a zona de convergência intertropical, que percorre toda a Linha do Equador. Por ser mais quente, apresenta pressão atmosférica menor, “atraindo” um grande fluxo de ventos dos hemisférios Norte e Sul do planeta, os chamados ventos alísios.

Em um dos dias da expedição a missão era simples: lançar ao mar três manzuás, uma armadilha para peixes. Seus tecidos são enviados para o laboratório, que, além de identificar possíveis novas espécies, mapeia os genes em busca de novos dados. Graças à análise de DNA é possível saber se o animal é mais parecido com os parentes brasileiros ou do Caribe.

Só faltou combinar com as correntes marítimas. Mesmo munidos com âncora e boia sinalizadora, todos os manzuás foram arrastados e desapareceram sob a água. Um quarto manzuá, com sinalização e âncoras reforçadas, foi resgatado todo amassado e sem nenhum peixe. “Quando via as modelagens de correntes daqui, achava que era um erro. Mas percebi que o modelo não está exagerado, é muito forte mesmo”, conta Mirella Costa.

Até um robô submarino, brinquedo mais caro da expedição, teve dificuldades no mar revolto. Como é controlado a bordo, com alcance de dois quilômetros, o navio precisa ficar praticamente parado para que o equipamento possa explorar o oceano sem risco. O que, apesar da insistência e do esforço do capitão, aconteceu apenas durante três dias.

PERIGO EM ALTO-MAR
Fica a questão: como alguém pode imaginar uma delicada exploração de petróleo em condições tão adversas? O histórico vai contra as petroleiras. Desde a década de 1960, houve 95 tentativas de perfuração, sendo 91 pela Petrobras, três pela BP e uma pela Exxon. Todas sem sucesso — 27 delas terminaram em acidente.

As cinco empresas que ainda mantêm interesse na exploração dos blocos aguardam o Licenciamento Ambiental, sob responsabilidade do Ibama. No ano passado, a francesa Total e a britânica BP viram seus Estudos de Impacto Ambiental (EIA), etapa técnica do processo, serem rejeitados. Não mencionavam a existência de coral. “Caso o empreendedor não atenda os pontos demandados pela equipe técnica, o processo de licenciamento será arquivado”, afirmou na época a presidente do Ibama, Suely Araújo, referindo-se à Total.

Essa contenda fez a operadora de dois blocos, BHP Billiton, desistir. A Total, que opera cinco, segue firme. Para seu azar, em um dos dias que o robô submarino foi para o mar, estávamos em um dos seus blocos. Pelas imagens, um grande banco de rodolitos pontuado com esponjas, estrelas-do-mar e peixes foi observado.

A notícia não demorou a repercutir. “Liberar o empreendimento pode resultar na destruição em larga escala do meio ambiente, configurando ecocídio — um crime contra a humanidade”, afirmou em parecer o procurador do Ministério Público Federal Joaquim Cabral da Costa Neto. Em nota, a Total se defendeu afirmando que planeja explorar petróleo a 28 quilômetros das camas de rodolitos, jogando a decisão final para o Ibama.

Já se sabe que o Grande Sistema Recifal do Amazonas é muito maior que os 56 mil quilômetros quadrados, invadindo os mares da Guiana Francesa, como comprovou o Greenpeace, que seguiu para o país vizinho no dia 30 de abril. A descoberta de recifes a 201 metros de profundidade faz com que a estimativa de sua área cresça ainda mais. Enquanto isso, Francini já planeja a próxima visita aos Corais do Amazonas. “A ciência não para. Se não começo a planejar agora, corro o risco de demorar anos para voltar. Daí já estará cheio de plataforma e nada de recife.”

O extremo mar do norte
A força das correntes, marés radicais, ventanias intensas e muita água turva criam um ambiente improvável para o Grande Sistema Recifal da Amazônia

 (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace )

1. Correntes marítimas
Uma das mais fortes do mundo, a Corrente Norte do Brasil, ao se deparar com outras correntes mais ao norte, curva-se sobre si em um movimento que forma grandes espirais no oceano.

2. Exploração de petróleo
São 12 blocos próximos aos Corais da Amazônia. A Total, com cinco, é a principal interessada. BP, Queiroz Galvão, Ecopetrol e Brasoil são as outras operadoras. A BHP desistiu da operação.

3. Ventos alísios
A região fica sob a zona de convergência intertropical, que percorre a Linha do Equador. Por ser mais quente, com pressão menor, atrai grande fluxo de ventos.

4. Marés gigantes
A região Norte do Brasil apresenta macromarés, com variações de sete metros a cada seis horas, o que acaba influenciando o comportamento das correntes marítimas.

5. Os recifes da Amazônia
O mapa é uma estimativa do tamanho da formação natural com base na expedição de 2016. 
Mas deve ser ainda maior, formando umcorredor biológico que liga o litoral do Brasil com o Caribe.

6. O peso da pluma
A água que vem do Rio Amazonas invade o oceano por até 200 quilômetros em linha reta. Carregada pela Corrente Norte Brasileira, chega a 500 quilômetros da foz, em Macapá.

About The Author